20100707

NARCISO INC. # 4048


Todos os dias todos ouviam aquela mulher nascida provavelmente na década de 1980 recitar seus inumeráveis impropérios contra o ar que respirava, acreditava-se que deveria ser uma doutora dessas que fazem doutorado para serem doutoras antes de passar seus dias em um banco de praça acariciando um dos volumes de o paraíso perdido, pois seu vocabulário de palavrões levavam para além da etimologia das línguas conhecidas.
Ninguém se importa com os velhos a não ser que sejam engraçados e não fedam tanto desde que a revolução cultural perdeu seu propósito com a morte de Mao; mas algo estava diferente naquele dia. O paraíso perdido aguardava em silêncio ao seu lado por um pouco de atenção enquanto ela alisava com prazer um ícone de plástico de algum santo italiano com penteado esquisito e uma história de descrença.
- “votaria em um candidato que ao menos prometesse acabar com todas as igrejas”
talvez tivesse que percorrer todas as esferas do conhecimento humano para chegar a essa frase conclusiva, pois nunca mais se ouviu barulho sequer saindo de sua boca, poderia ter concluído sua etapa na vida com a derradeira frase ou enlouquecido algo entre o momento exato da passagem de um ônibus e um carro coupê e as lembranças de uma vida de intermináveis impossibilidades.
Poderia ter dito “porque você não fuma o meu pau” para a menina que pedia todos os dias por um cigarro, mas não se tratava mais de ter guardado algum sentimento ácido, apenas poder ter a liberdade de falar o que bem entendesse sem que um crítico literário usasse suas mais sinceras palavras reunidas como exemplo de uma coleção de recortes culturais.
Poderia estar em um banco de bar, em um banco de ônibus atravessando a América do sul ou em um banco aguardando o número de sua senha piscar no teleprompter; mas em nenhum lugar além de um banco de praça poderia atingir mais as pessoas com sua presença, como se tivesse um desejo desesperado de ser vista tal como o banhista que está se afogando em uma praia no inverno mais severo.
Nem mesmo os taxistas sabem para onde levam as ruas

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