- já estará tudo acabado quando você levantar; disse Fernanda num tom solene , como se diz para um filho com febre que febre é uma doença imaginária, como se ser solene fosse uma característica de sua personalidade com todas aquelas convulsões e espasmos de fúria que usava como quem acende cigarros sem vontade de fumar.chegaria ou chegou a hora de as verdades que nunca acreditaria que fossem verdades estariam estampadas em sua frente como uma cortina de mal gosto confeccionada por uma fábrica que o dono explora os funcionários com a desculpa que está passando por dificuldades financeiras desde que sua mulher conseguiu na justiça tomar todos os bens que acumulou em anos de trabalho e economia mesmo que os dois ainda estejam morando juntos; talvez o fato de sua glândula pineal não produzir dimetiltriptamina suficiente para suportar a realidade e criar um mundo idealizado fosse prenúncio que quando acordasse e levantasse seria seu fim.
- Quando o curandeiro sábio termina o seu trabalho, as pessoas dizem: “incrível... fizemos tudo nós mesmos" teria dito Débora se não estivesse no ônibus para visitar seu pai e pedir dinheiro emprestado para pagar a financiadora que apreendeu seu carro.
esperei, sinceramente, e é muito difícil ser sincero nesta hora que, ao acordar, toda minha vida fosse um sonho desses que não se tem controle por estar cansado demais para controlar o sonho, mesmo que não houvesse muita coisa para entregar ao arrependimento quando ele viesse buscar sua parte devida com seu terno preto de listras areia e sapatos de golf; não foi como havia planejado como nunca nada é como se planeja e eu era eu mesmo esperando algumas chibatadas nas costas e um sermão que deixasse meu rosto corado e meus olhos cabisbaixos.
- você está pensando o que? isso aqui não é o ensino fundamental para você ser repreendido... nós estamos falando de crimes de uma vida toda.
nessas horas sempre se espera que crimes são atribuições de quem ainda vai durar muito tempo e tem aparência suburbana e fala apenas duas línguas e na maioria das vezes se veste mal, mas segundo quem determina quem se fode mais e quem se fode menos, crime é crime e não importa seu parentesco com o vereador de sua cidade e se você deu algum dinheiro para a velha em frente ao cinema ou deu um chute na boca da velhinha para ter uma história de rebeldia para contar para seus amigos e netos quando não conseguir mais transar de forma natural.
esperei que ante meus olhos começasse o derradeiro filme, já imaginava em uma fotografia de qualquer filme do kurosawa depois de os homens que pisaram na cauda do tigre, os milhares de alemães que matei por pura diversão e sadismo na segunda guerra mundial, reese witherspoon e mark ruffalo em just like heaven, todos os bairros de manhattan com seus moradores fingindo que não se importam, a lista de alergias que ulceram a pele, as armas de mão que ajudam em mortes violentas e não são punidas como seus comparsas, a política e a democracia na história do direito brasileiro e sua necessidade de rever seus conceitos e se adaptar à dinâmica social sem que se anule em seu preceito primordial, a face perversa do narcisismo moderno, os livros de frants kafka como sempre gostei de dizer, as 90 receitas de salmão que nunca preparei, humberto maturana e francisco varela em um bar em santiago do chile ou em santiago de cuba ou em santiago de compostela bebendo e falando de informação celular e pensamento sistêmico e ressaca, os filmes mais perturbadores da década de 193o, documentos necessários para entrar na comunidade europeia e aquele seguro saúde de 30000 euros, candy shop tocando uma semana ininterrupta e zé coice de mula contra rubão bebê tocando dia sim dia não uma semana inteira de sete dias e dead and lovely tocada pela metade... mas nada passou no meu filme, nem havia filme porra nenhuma só o sentimento que não havia mais nada a fazer e esperar que alguma coisa acontecesse sem que eu pudesse opinar e sequer dar uma sugestão que me beneficiasse.
levantei e não havia a mais bela paisagem do mundo ao fim da torre apenas o bafo frio de A Bao a Qu que sequer se deu ao trabalho de acender sua luz.
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